Por que repudiamos o machismo naturalizado

Texto originalmente publicado em Vila Mamífera

por Ana Rossato, Laura Sagrilo, Priscila Cavalcanti, Simone Cortez e Thielly Soengas Manias

Para melhor compreensão deste texto, as autoras precisam afirmar que entendem parto humanizado como “processo fisiológico em respeito irrestrito ao protagonismo da mulher, de conformidade com as evidências científicas, a ética e o direito”. Nesse sentido, o parto é, sim, da mulher. Estando de acordo com as evidências científicas em assistência obstétrica, não apenas o desejo da parturiente deve ser acatado, mas também deve ser respeitado em plenitude o direito dessa mulher à autonomia e ao consentimento informado.

Pois bem. Em uma noite quente de verão, surgiu na rede social um questionamento interessante: teria um homem (seja indivíduo do sexo biológico masculino ou indivíduo identificado socialmente como homem) lugar dentro da cena do parto, para trabalhar como “doulo” ou, em infeliz neologismo, como “doulano”? Rapidamente, como é o destino de tudo que acontece em rede social, foram desfechadas opiniões de todos e para todos os lados. Longe da unanimidade e objeto de enquete em um grupo fechado de doulas, as opiniões dividiam-se em, basicamente, dois grandes grupos. O primeiro grupo defendia que o parto é feminino e não tem lugar para homens como “doulos”. Essa corrente entende que a doula desempenha atividade predominantemente feminina, carregada de sororidade e em que a energia masculina atrapalharia, seria destituída de sentido. A outra opinião defendeu que não se trata de uma limitação de gênero, que assim como se defende que uma mulher pode fazer tudo que um homem faz, impedir um homem de fazer a formação como “doulo” ou de exercer a ocupação seria misandria, preconceito; seria limitar o direito da mulher em escolher quem ela bem entenda para as funções na assistência ao parto.

Em primeiro lugar, não se pretende aqui discutir a questão do “doulo”, uma vez que o cerne deste texto versará sobre outro assunto. Evidentemente que a ordem jurídica brasileira não veda ao homem o exercício da ocupação doula. A lei pátria também não impede a mulher de escolher um homem como seu “doulo”. Ou até como seu “doulano”… Portanto, o trabalho de doular é franqueado ao homem e cabe a cada mulher ponderar sobre tudo que envolve o trabalho da doula e escolher quem, para ela, tenha mais capacidade para o trabalho.

Em segundo lugar, uma pequena digressão sobre a misandria. Misandria é um conceito e não uma realidade. Quando se fala em misandria, chovem argumentos carregados de falsa simetria, comparando a misandria à misoginia.

A falsa simetria é evidente. Mulheres são violadas, assediadas, violentadas, deslegitimadas, silenciadas diariamente, somente e apenas por serem mulheres. Homem nenhum no mundo passa por qualquer desses tipos de violência, apenas e somente por ser homem. Um homem sempre deterá privilégios sobre mulheres, enquanto a sociedade se mantiver em um sistema machista e patriarcal.

Isto posto, a questão aqui é outra. Um médico ginecologista e obstetra, senhor célebre junto ao movimento pelo Parto Humanizado, publicou texto no blog Vila Mamífera, no último dia 7 de fevereiro. O citado senhor faz afirmações bizarras, pretendendo fazer crer que sua motivação é a discussão intelectual a respeito do sistema de dominação e poder. Menciona a questão do “doulo” em tímido argumento, dizendo que, diante dessa questão, “corporativistas de gênero ‘subiram nas tamancas’ e reclamaram dessa invasão de território”, reputando a reação das doulas e ativistas como “sexista”.

O autor do texto não pode pretender fugir ao contexto anterior, em post da rede social, onde vociferou sua fúria, bradando em claras e inconfundíveis letras que a mulher teria “invadido”espaços dos quais o homem era “proprietário”. Chegou mesmo a ironizar, de modo grosseiro, a opinião das mulheres que entendiam que o “doulo” homem não cabe na cena do parto, afirmando que iria surgir um doulo que “estuprasse a mulher entre uma contração e outra”.

Agora, em texto onde não precisa lidar com as respostas afiadas da rede social, o antes festejado senhor brinda a comunidade leitora do blog, com sua defesa de um machismo nada disfarçado. Afirmando que não crê que o patriarcado seja um sistema machista, o texto conta que o parto era proibido para o homem até fins do século XVI, como se o sexo masculino tivesse sido vítima de exclusão e sexismo.

Um dos grandes problemas desse tipo de opinião é o valor que ela naturalmente agrega por ser emitida por alguém que é renomado dentro do seu meio profissional. Isso, entretanto, não garante coerência e muito menos conhecimento do que se pretende abordar. Ao afirmar que o patriarcado e o machismo são conceitos diferentes, o citado senhor se esquece de que um é diretamente dependente do outro, formando um ciclo difícil de ser quebrado. Se o obstetra, por um segundo, se propusesse a estudar de fato as relações de gênero, conseguiria ter o olhar empático, de que um modelo que tem como base a opressão jamais poderia ser considerado um modelo de proteção. O patriarcado se firma exatamente na ideia entre autoridade e subordinado. Transformar a submissão em proteção é apenas usar de um eufemismo barato e facilmente refutável. O machismo, por sua vez, se torna a ferramenta para a manutenção do modelo social patriarcal: para que as mulheres continuem a ser subordinadas, nada é mais eficaz do que diminuí-las, colocá-las como menos capazes, menos racionais, seres passíveis de exclusão e que precisam de um direcionamento paternal.

O texto omite o fato de que, embora na antiguidade o parto tenha sido domínio do feminino e das deusas, isso não impediu que houvesse, por parte dos homens, toda forma de racionalização a respeito. A maieuta (parteira, avó, segundo Resende, 1974:1) ateniense sabia muito mais a respeito de gravidez e parto que o físico hipocrático (o médico da época). Entretanto, a justificativa era de que a assistência aos partos estava “aquém da dignidade” do físico homem.

Como ensina Diniz (1996), com o advento do cristianismo e sua ascensão ao poder em Roma, no século IV, e com a “atribuição de qualidades demoníacas à sexualidade, em especial à sexualidade feminina, incorporou-se o pessimismo sexual-reprodutivo dos estóicos e gnósticos, assim como uma intensa aversão pelas mulheres, que foram cada vez mais excluídas da Igreja e proibidas de celebrar”. Os cultos pagãos e seus deuses foram demonizados e intensamente reprimidos (Roussele, 1990:353). Na Idade Média, o ofício das parteiras era visto como “sujo” e a misoginia da Igreja via as mulheres e seus órgãos reprodutivos como demoníacos. O Malleus Maleficarum (Martelo das Feiticeiras) é um livro essencial para compreender-se o contexto, onde se afirmava que “as parteiras superam todas as outras mulheres em perversidade”. Uma das consequências mais dramáticas da fantasia sexual da Igreja Medieval foi a de que o parto passou a ser um evento cada vez mais “vigiado” pelos médicos, na certeza de que parteiras ofereciam recém-nascidos ao demônio.

Assim, no século XVI, publicou-se a primeira obra a respeito de ginecologia e obstetrícia por um homem (Eucárius Roesslin), que, na verdade, teria copiado de observações das parteiras da antiguidade (como Cleópatra, que não é a mesma que foi rainha do Egito, mas uma parteira culta). Regulamentou-se e reprimiu-se a função das parteiras, e, conforme Ehrenreich e English (panfleto “Bruxas, Parteiras e Enfermeiras, 1973), a afirmação de que a “técnica” dos médicos varões teria superado a “superstição” das parteiras não se sustenta.  O que houve foi o roubo do parto pelos homens, com a imposição cada vez mais acirrada de limitações, incluindo suplícios e assassinatos, sempre sob argumentos “racionais” de bruxaria.

Esta pitada de história serve para mostrar que, independentemente da racionalização utilizada pelo modelo masculino de organização social, o parto foi gradativa e violentamente sendo roubado às mulheres.  Serve para demonstrar que o levante da década de 80, na Inglaterra, foi um movimento de retomada do evento feminino. As mulheres exigiram ser ativas em seus trabalhos de parto e ser respeitadas quanto ao consentimento informado (Kitzinger, 1981; Balaskas, 1993), conseguindo que, por exemplo, a episiotomia realizada sem o consentimento da mulher tivesse o mesmo tratamento legal que a agressão (Graham, 1997).

Deve ficar claro que, em momento algum, a mulher pretende a exclusão do homem da cena de parto. A mulher não pretende o massacre do médico (mulher ou homem que atue de conformidade com o modelo masculino do obstetra tecnicista), não pretende utilizar de argumentos falaciosos – como bruxaria – para afastar o homem. Tome-se a militância ativa pela presença do acompanhante, que, na maior parte das vezes, é o pai do bebê – um homem! Ou o trabalho da doula, buscando a inclusão do pai do bebê no trabalho de parto. Não se pretende massacrar, nem expulsar, nem “invadir”. O “doulo” que seja escolhido pela mulher não está a “invadir” domínio algum: seu papel no parto tem a feminilidade do trabalho da doula e é bom que assim seja, não importando se o profissional é homem ou mulher, biologicamente falando. Desde, claro, que a escolha seja da mulher que está parindo.

O lamentável texto, entretanto, não para por aí e afirma que “o machismo é um sistema de poder como qualquer um dos sistemas existentes”. E pergunta, na maior naturalidade: “Quem não se deixa cativar por eles? Quem não os incorpora ou naturaliza?”. Conclui o delírio afirmando que “Não se trata de justificar qualquer desses sistemas de exclusão, mas incorporá-los à natureza humana”.

Não, meu senhor. A naturalização dos sistemas de opressão é tão violenta quanto a ação deles. Não se aceita, não se incorpora o sistema de exclusão. O ser minimamente empático não se deixa cativar por esse sistema e jamais o aceita como “modelo e estrutura social de absoluto sucesso” ou “ferramenta de progresso”, como o senhor pretende. Porque o sucesso conseguido pela opressão é odioso, porque a sedução do poder e da exclusão é detestável e deve, sim, ser combatida a qualquer custo. Que progresso é esse, onde “os mais fortes” exploram suas mulheres, controlam-lhes os corpos e o processo reprodutivo, por meios violentos e humilhantes?

O espaço do parto tem dona, sempre a mesma: a mulher que dá à luz. Essa é a reconquista que o movimento pelo Parto Humanizado vem propondo e obtendo, passo a passo, de modo sofrido e por muito trabalho social, legislativo, jurídico, em políticas públicas e em educação. Todos aqueles que souberem respeitar o direito e protagonismo da mulher serão bem recebidos, desde que trazidos pela escolha dela. Se qualquer profissional que atue no parto for respeitoso e escolhido pela parturiente, certamente que o movimento não o repelirá. Entretanto, se o profissional tiver a mesma mentalidade que o autor do texto e acreditar em invasão de espaços, silenciamento e deslegitimação de discursos de mulheres, ou deixar-se cativar por sistemas de exclusão como ferramentas de sucesso, ele não passará.

 Referências:

Balaskas J. Parto Ativo: Guia Prático para o Parto Natural. São Paulo : Ground, 1993

Diniz CSG. Assistência ao Parto e Relações de Gênero: Elementos para uma Releitura Médico-Social. Dissertação apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Mestre em Medicina. São Paulo. 1996.

Ehrenreich B. English D. Witches, Midwives and Nurses – A History of Women as Healers. New York, The Feminist Press, City University of New York. 1973.

Graham ID. Episiotomy: Challenging Obstetric Interventions. Wiley, 1997

Kitzinger SD. Walters R. Some Women’s Experiences of Episiotomy. National Childbirth Trust, 1981

Resende J. Obstetr[icia. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1974.

Roussele A. A política dos corpos: entre a procriação e a continência em Roma. In: DUBY G; PERROT M. História das Mulheres. V. 1: Porto/São Paulo, Afrontamento/Ebradil, 1990; p. 351-410.

Sobre simone cortez

Psicóloga, escritora e sonhadora em tempo integral!
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